“Para quem quer fazer exercícios de reflexão”

Olá crianças!

Antes de mais nada, perdoem-me pelo meu sumiço nestes últimos dias. Tem uma semana de recesso em que aproveitei para resolver uma série de coisas importantes (relacionadas geralmente a casamentos) e acabei não conseguindo finalizar o post que tinha planejado.

Contudo, em certo sentido isso foi até bom porque no dia em que me dedicaria a finalizá-lo, caiu em minhas mãos um jornal que falava sobre uma exposição de arte digital em São Paulo e isso instigou uma série de reflexões que queria compartilhar com vocês. Portanto, a postagem que estava prevista ficará para uma próxima oportunidade.

Em certo momento do artigo que li, a jornalista diz que a aversão comum a esse tipo de arte contemporânea é o fato de verem suas peças como meros brinquedos por seu caráter “interativo” e que os visitantes procuram essas exposições para interagir com as obras e não “apenas” contemplá-las. 

Certamente vocês conhecem meu posicionamento com relação à noção de “interatividade”. Ao contemplarmos uma obra também há interação: nós nos movemos e o quadro que estamos observando faz o mesmo conosco. Em uma gravura do Escher, por exemplo, nossos olhos se movem tentando seguir as linhas lógicas, mas surreais que formam cachoeiras que caem para cima, insetos que viram desenhos e pássaros que se metamorfoseiam em prédios. E essas obras também se movimentam porque nos tocam profundamente se permitimos que o façam.

Mas não é uma revisão que quero fazer aqui, mas pensar em outras coisas.

Refleti a respeito do que me incomodava na arte contemporânea que tanto busca “estabelecer interação com os espetadores” como se isso nunca tivesse acontecido antes na história da arte… E cheguei a algumas considerações que julguei relevantes para compartilhar com vocês todos e para debatermos um pouco.

Nossa sociedade contemporânea é baseada no “poder do indivíduo”. Ou seja, você pode ser tudo o que você quiser desde que tenha força e poder suficiente para tal (inclusive passando por cima de outras pessoas). Por isso que Nietzsche é tão popular na modernidade com seus conceitos de super-homem e vontade de poder, por exemplo. Isso tem reflexos na ideia do “gênio criador” de que já falamos anteriormente, mas também no papel do espectador e do jogador em geral.

Hoje, entregar-se a algo é visto como fraqueza e até mesmo algum tipo de doença. Se antes a entrega pessoal e irrestrita a algo era vista como uma característica feminina, creio que podemos dizer que atualmente essa é uma característica inumana. E aqui reside o maior problema que nos interessa: mas não nos entregamos a um jogo quando jogamos?

Sim, de fato o fazemos e já falamos muito disso em nossa coluna. Essa entrega demonstra nosso interesse em descobrir o que um game pode fazer conosco e não o que nós podemos fazer com ele. Tal característica faz parte inclusive do próprio aspecto lúdico da arte em geral. Como diz C. S. Lewis, não deveríamos ler um livro pensando no que podemos fazer com ele, mas sim esperar que ele faça algo conosco.

Nessa arte contemporânea, parece haver o convite à atividade e não à entrega. Ou seja, uma “arte digital” ou quando chamamos um game qualquer de “arte” queremos dizer que o “espectador” é alguém que age sobre a obra também, que a modifica “de fato” etc. Afinal, nós temos o poder de estabelecer uma relação estética com qualquer coisa: de uma tela sensível ao toque passando por um mictório assinado.

Há uma inversão perigosa aqui já que o senhor da obra de arte contemporânea (e, porque não, de muitos games contemporâneos) é o próprio espectador (jogador). Ele não é mais aquele que se entrega a algo para que este o domine e o modifique completamente, mas sim o que realiza toda modificação.

E descobri que é isso que me incomoda na arte contemporânea e no discurso usual que defende games como artes quase que por definição. Jogos, games e obras de arte exigem entrega e passividade, mas o homem contemporâneo exige atividade sobre tudo. O que inclusive corrobora com o tecnicismo moderno em que nos perguntamos sempre como podemos utilizar determinada coisa e por quais razões haveremos de fazê-lo. Atualmente, nós simplesmente temos que agir sobre o mundo (“transformá-lo”) e não aceitar o que mundos-jogo nos oferecem para que nós mesmos sejamos transformados.

É isso que queria compartilhar com vocês essa semana. Até o próximo post!

Academia Gamer: Individualismo, arte e jogo
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10 ideias sobre “Academia Gamer: Individualismo, arte e jogo

  • 24/07/2012 em 8:58 am
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    essa parte que um game pode fazer conosco e não com ele…isso pode ser interpretado de várias formas ao meu ver, pode ser tanto o gamer jogar e aprender algo como uma língua ou ter noção de história, se jogar um game e não ter a cabeça no lugar, o cara faz atrocidades como matar pessoas,atropelar pedestres….., ou fazer, dependendo do enredo, apreciar boas histórias. mas isso se o gamer tiver uma mente aberta para gêneros e não apenas um tipo.

    e não sei se entendi bem uma parte do texto mestre…as pessoas acham videogames como arte tipo…jogos do Wii? onde a gente tem que fazer movimentos para valer o jogo? e os jogos com enredos não contam mais? ainda acho que um game com algo a ser contado ou seus gráficos possam ser algo valorizado, não como um quadro, mas algo parecido.

    mas se eles acham interessante uma pessoa obesa fazer movimentos num jogo de dança do Wii como arte…bem, há fotos peculiares nos museus que acho que eu não entendo bem, mas deve ser belo.

    e sobre Nietzsche..só me conformo em ser uma pessoa melhor, sem ferir ninguém.

    Hee-Hoo Mestre Senil!

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  • 24/07/2012 em 11:47 am
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    leandro(leon belmont)alves,

    Isso mesmo! É algo bem amplo de fato e exige uma “cabeça aberta” e uma entrega honesta para saber o que o jogo tem a nos oferecer realmente.

    A comparação de games com arte é bastante comum com relação a qualquer game. Provavelmente diriam que games de Wii apenas são “mais interativos” que outros… Eu acho isso ruim porque acaba descaracterizando o que é jogar realmente. E penso como você: os gráficos até podem ser valorizados como belos neles mesmos (ou as músicas), mas o jogo no qual ele aparece não se torna arte por conta disso. Seria como dizer que um museu é arte porque tem quadros artísticos dentro dele.

    Mas isso já é moralidade e não niilismo. hehehe O Nietzsche entra em contradição várias vezes em seus textos e escreve com aforismos (frases curtas e “jogadas”) perfeitas para o Facebook. hehehehe

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  • 24/07/2012 em 2:47 pm
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    isso não tem a ver com a diferença entre eu me entregar a um jogo estilo rpg japonês onde será mostrado uma história e o quanto isso vai representar pra mim, ou me entregar a um jogo estilo fallout que tem muitas histórias ali mas praticamente é um cenário montado pra eu vivenciar aquele mundo, afinal eu quem criei nomes e características do personagem a minha vontade?

    algum desses seria o tal ‘game arte’ ou os dois? ehehehehhe

    vlw mestre Senil

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  • 24/07/2012 em 3:06 pm
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    Juliano,

    Nem um e nem outro. hehehehe O “entregar-se” não é uma característica da arte, mas do jogo. A arte tem um elemento lúdico e, por isso, nós nos entregamos a uma obra também.

    Porém, a entrega ao “jogo da arte” é ligeiramente diferente porque a arte tem como objetivo “mostrar” algo para nós. Já um jogo comum não tem esse objetivo, mas outros como salvar o mundo, derrotar todos os vilões, conseguir conquistar uma colega de escola etc.

    É dficíl a gente diferenciar uma “obra” de uma “obra de arte” (eu mesmo estou fazendo isso há pouco tempo). O gráfico de personagens dentro de um game é uma obra: é algo feito com procedimentos técnicos e tal, mas não é essencialmente uma obra de arte. O personagem não está ali desenhado para que olhemos para ele simplesmente e o contemplemos, mas para que o controlemos em jogo.

    Contudo, há algo importante a pensar. Como os games de uns anos para cá (desde o começo dos anos 1990, mas com grande força a partir de meados dessa década e, principalmente, a partir dos anos 2000) têm tido como preocupação serem mais “realistas” e tendo como ideal de perfeição o cinema, cada vez mais e mais os videogames têm como objetivo nos mostrar coisas do que nos convidar de fato a cumprir alguma outra tarefa.

    Por exemplo, tem games modernos que adoro a trilha sonora, ou o design dos cenários e dos personagens, mas que não consigo jogar de jeito nenhum porque o jogo todo se propõe a ser “arte”. Ou seja, tudo que o game me oferece jogando, eu consigo ter acesso e prazer estético fora dele.

    Isso me leva a pensar que podemos apreciar uma game music (sei lá, uma faixa de Megaman) como música mesmo (ou seja como um “jogo representativo”, como arte), mas somente quando ela é retirada do seu jogo e se mostra a nós simplesmente como “uma música a ser ouvida”. Em jogo, ela joga conosco e dá todo o clima e o ambiente de uma fase ou de um evento, mas não se mostra como arte. Provavelmente se mostra como “belo”, mas o belo não designa apenas o que é arte.

    A impressão que tenho é que falam que videogame é arte porque é mais “culto” do que falar que um game é um jogo. Parece que “jogo” é “coisa de criança” ou “algo pouco sério”. Parece muito mais um eufemismo que uma descrição, sei lá…

    Valeu você pelo comentário!

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  • 25/07/2012 em 7:53 pm
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    Eu sempre considerei “games” como arte porque quando jogo não me sinto muito diferente de quando leio um livro, não sou eu que estou lá, mas “vejo” e sinto tudo o que acontece lá.

    Mas você me lembrou de algo que um amigo me disse esse fim de semana. Ele estava comentando que queria comprar o novo Resident, foi quando comentei que eu não gostava desses novos jogos da série porque perderam o “survive horror” que tanto me agradou nos jogos anteriores e foi que ele respondeu: “Não fazem mais disso porque não da mais dinheiro”.

    E lendo o texto me fez pensar, será que a série ainda pode ser chamada de “Resident Evil” com tantas mudanças e com tantas “Descaracterizações”? A arte digital pode se chamada de arte? Ou melhor, nossos bons quadros ainda serão chamados de obras de arte com o passar dos anos?

    Espero não ter me distanciado demais do assunto principal e até mais caro Senil.

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  • 26/07/2012 em 9:29 pm
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    Olá…
    Eu acompanho esse site á muito tempo, adoro os artigos dele.
    Parabéns á todos que escrevem aqui.
    Eu li este artigo na ign e achei muito interessante,me identifiquei com o artigo, se for possível gostaria que fizesse um artigo sobre o mesmo assunto que ao meu ver é muito interessante, fica a dica. o endereço é: http://www.ign.com/articles/2012/07/26/gaming-with-obsessive-compulsive-disorder.
    Um grande abraço á todos. t+

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  • 26/07/2012 em 9:45 pm
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    Bom texto!
    Só sei que eu percebi que presto muito mais atenção nos gráficos e menores detalhes estéticos dos games quando eu estou assistindo; quando eu estou jogando eu realmente estou mais atento ao personagem à ação que se desenrola, no sentido de tomar parte nela.
    Acho que games são arte, mas não são só arte. É como se você pudesse pegar, sei lá, o quadro da Mona Lisa, apreciar a pintura, tirar da moldura e fazer um avião de papel. Ou derrubar o teto da capela sistina e usar como quebra-cabeças. O game é arte enquanto estamos na parte contemplativa dele, mas não enquanto o jogamos.

    Um livro: quando o lemos (durante) procuramos entender literalmente o que ele diz, claro, com toda a bagagem e contextualidade com o qual deve ser lido, ou às vezes lhes damos sem necessidade; o mesmo livro pode ser entendido de maneiras diferentes por diversas pessoas, ou até pela mesma pessoa em tempos diversos. Estamos interagindo diretamente com o livro, não o estamos contemplando.

    Mas, depois da leitura, quando paramos para refletir além do livro, ou quando comentamos com nossos amigos sobre a leitura, aí eu diria que estamos apreciando o estilo do autor, aí passamos a ver o lado artístico do livro.

    Bem, só opinião minha, até que venha um bom exemplo e a desconstrua. É legal pensar nessas coisas.

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  • 28/07/2012 em 11:23 pm
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    Interessante você citar essa “rejeição” à entrega nos dias atuais. Bem reflexo da nossa sociedade de consumo. Compre, use, jogue fora, e recomece o ciclo. Se você se entregar demais à um jogo, por exemplo, você vai acabar comprando menos, e isso, comercialmente, não é interessante.

    E falando de arte, vinha pensando. Michelangelo, se entregou por completo na criações dos afrescos da Capela Cistina. Parece que levou onze anos para terminar, se não me engano. Imagina se fosse hoje? Daria no máximo uma semana para terminar e ele teria que esconder os defeitos com Photoshop, ha ha ha.

    Sobre o Nietzsche, realmente ele se contradiz diversas vezes em suas obras, não se se por reflexo de sua personalidade ou se é de propósito. Creio nesse segundo, acho que ele é um sacana que queria mais era provocar os outros e fazer com que pensassem com suas próprias idéias. Se era isso, ele era bestial, senão era uma besta. Mas é uma leitura interessante, sem dúvida. Novamente, é preciso ter mente aberta e se entregar à obra dele.

    Hoje é tudo meio descartável, mas isso não me desanima, não. O negócio é ter personalidade e se entregar à jogos, filmes e livros. Se os outros não gostarem, azar deles.

    Eu também fiquei um tempo fora, é bom voltar aqui e comentar.

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  • 30/07/2012 em 12:20 am
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    Carrion,

    E de fato estamos lá em um game. Mas também em um livro, embora de modo diferente. É tipo um envolvimento (de “estar envolvido”) não é?

    Não distanciou do tema não! Na verdade essa é uma questão que só as gerações posteriores poderão responder. hehe Há pré-concepções que temos tão enraizadas em nossa época que não conseguimos nos desvencilhar delas para dizer com segurança o que se tornará tradição (ou clássico) no futuro.

    Mesmo com toda essa onda retrogamer, não são muitos os jogos dos anos 1980 que ainda divertem, por exemplo. Tem muita coisa ruim naquele meio, mas que muito provavelmente as pessoas até gostavam… Então, é preciso ver se algo se torna em tradição e é “passado adiante”: previsões nesses casos não funcionam (nem mesmo com base em sucesso de vendas ou coisas do tipo).

    Mas isso é uma característica do jogo em geral e não da arte em específico. Por isso que jogamos xadrez até hoje.

    Clehirton,
    Beleza cara? Valeu pelo comentário e pelos elogios também (agradeço aqui em nome de toda a equipe, claro)!

    É um tema bem interessante! Acho até que já explorei um assunto afim (“vício”) em algum momento aqui na Academia Gamer mesmo, mas com Transtorno Obsessivo-Compulsivo eu nunca havia pensado. E não é que é uma ideia bacana?

    Psicopatologia não é exatamente a minha área na psicologia, mas posso pesquisar melhor a respeito antes de comentar a respeito. Vou guardar o link que passou e ler com calma para escrever algo depois!

    Muito obrigado mesmo e continue comentando!

    strider16,
    Ótimas analogias! E eu concordo plenamente com você. Claro que pode haver arte em um game! Quantas vezes eu já não parei um jogo (pausar às vezes não adiantava) só para ficar ouvindo uma música espetacular que estava tocando? O mesmo com gráficos (tem panoramas belíssimos em muitos games por aí) e, quem sabe, quadros mesmo dentro do jogo e por aí vai.

    O problema seria considerar jogar como sendo uma arte, entende? Como se jogar fosse um “contemplar mais interativo” que é o que o discurso comum faz a respeito desse assunto. Em um congresso mesmo que eu fui o semestre passado sobre literatura, o cara defendia exatamente isso… Isso prejudica muito a compreensão do que é jogar videogame de fato…

    Eu até diria que essa “interação” que você diz com o livro (de construção de sentido e tal) é o que contemplação significa: é um olhar atento, obediente e, curiosamente, livre. É tentar ver o que a obra está tentando nos mostrar.

    E a conversa posterior com os amigos não transformaria isso tudo em arte contemplativa, mas em tradição. É essa comunidade e compreensão mútua a respeito de alguma coisa que pode tornar um jogo, uma obra de arte etc. atemporais e perpassarem gerações.

    Onyas,

    Exatamente isso: é tudo descartável.

    huahauhauhauha Pode crer! Bem capaz mesmo de ter tido que fazer isso! Que nem o cara que pinta a Monalisa no Paint. hehehe

    Mas vale notar que a entrega do artista (ou do designer de um game em outra área) é diferente da entrega do espectador (ou do jogador). O primeiro realiza uma entrega “técnica”: ele tem que fazer algo e vai ficar pensando em maneiras e formas de fazer esse algo com aquilo. O segundo é uma entrega pelo envolvimento. Ou seja: um pergunta como fazer algo; e o outro como será afetado por isso.

    hehe Isso é algo que o Nietzsche pensaria mesmo. hehehehehe Ou a sífilis teria pensado por ele? huahauhauahuahauhauha

    Muito bom mesmo! Continue comentando! Deve ser um dos únicos que tem comentários lá no começo da Academia Gamer até hoje, eu acho. hehehehe

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