“Para quem quer fazer exercícios de reflexão”

Olá crianças!

Não sei mesmo porque não pensei nesse tema antes. Desde que fiquei sabendo do anúncio do segundo filme de Tron fiquei ouriçado para assisti-lo. Claro que a ideia de ser possível vagar por um mundo cibernético (ou virtual) já foi explorada desde o século passado nas mais diversas mídias. Temos livros, games, animes e, claro, filmes que exploram essa sugestão.

Claro que muitas tratam isso como um “assunto cabeça” tornando tudo um pouco complicado de se entender. Como é, por exemplo, aquele que se mostra para nós em Serial Experiments Lain. Em outros casos, essa viagem é simplista e trivial como em outro anime (com público-alvo infantil): Digimon. No caso de Tron, há certo meio-termo. Por ser uma franquia da Disney, acaba sendo uma película para a família por definição; contudo, a ideia é ousada por ter ocorrido em uma época em que videogames faziam sucesso, mas computadores pessoais ainda estavam em estágio embrionário.

Acima, um wallpaper de Lain. Eu não recomendo a ninguém que o assista, exceto se a vontade partir de vocês mesmos. 😛 Eu gostei de verdade (e não pela “profundidade” ou “complexidade” pura e simples).

Quando falei do Channel F, comentei algo sobre a originalidade de Tron no uso da computação gráfica que praticamente inaugurou tudo quer conhecemos de filmes e games com CG. Cheguei até mesmo a falar que “sem Tron, não teríamos a Pixar” como analogia ao fato de que a indústria dos games não seria a mesma que conhecemos hoje se não fosse pela inovação do console da Fairchild e o uso de múltiplos cartuchos programáveis.

Contudo, não é disso que vou falar. Vou me fiar menos da revolução que o filme trouxe e mais em seu enredo. Não se preocupem porque não vou requerer que conheçam o filme todo e, muito menos, vou soltar diversos spoilers sobre algum filme da série. Queria discutir justamente esta questão dupla de entrar em outro mundo. Nem vou me dar ao trabalho de elaborar demais uma outra questão do filme que é a existência deste outro mundo no qual colocamos não casas e tijolos, mas programas que são, por assim dizer, nossas crias (que carregam nosso DNA principalmente em seus rostos). Isso me levaria para uma outra questão que envolve pensarmos em Criador e Criatura; seria até interessante pensar em escritores e pintores para ilustrar a questão, mas isso daria muito pano para a manga. E não é esta a minha ideia para este post.

Para os que somente conhecem o filme de nome, vou adiantar algumas informações necessárias para entender o que falarei a seguir. Não vou usar nomes de personagens de propósito para não confundir demais. Basicamente, um desenvolvedor de jogos de videogame entra no mundo criado por ele mesmo. Só isso. 😀 No segundo filme, é o filho dele que faz a mesma viagem. Não precisam saber de nada mais do que isso para passear com calma durante este post. Eu disse que não ia soltar nenhum spoiler, não disse?

Acima, pôster do primeiro filme de Tron. Que, apesar do que muitos dizem hoje em dia, é muito bom.

Já falei em outras oportunidades sobre a questão de haver o pre-ludere (ou prelúdio), aquele momento em que queremos jogar alguma coisa e decidimos o que jogar. É aquele momento imediatamente anterior ao que chamei na minha dissertação de mestrado de in-ludere (ou ilusão). Não vejam ilusão como “mentiras”, ou “coisas falsas”. Pensem em seu sentido mais original indicado justamente pela sua etimologia. Seria algo como “estar em jogo”. Ou seja, entre o pre-ludere (prelúdio) e o in-ludere (“estar em jogo”) há uma espécie de salto.

É uma mudança total de qualidade; o pre-ludere não explica o salto por uma simples relação causal. E, de forma semelhante, o in-ludere não pode ser explicado de tal maneira. Claro que estou aqui tocando em um debate essencial da ciência: é o determinismo absoluto ou não? Mas também não vou me embrenhar nessa mata densa e escorregadia. É melhor nos mantermos em um terreno mais seguro.

É preciso que escolhamos entrar neste mundo. E, uma vez que o tenhamos escolhido, é preciso levá-lo a sério. Se nos lançamos em um mundo rodeado de magia em que temos que portar espadas e angariar aliados para derrotar um mal antigo que ressurge a cada mil anos, temos que encarar isso com seriedade. Claro que um game mais cômico deve ser levado a sério também; e isso significa rir na comicidade dele; não uso o termo “sério” como sinônimo de taciturno, obviamente. Ou conseguem jogar algo com o Goemon sem rir ao menos um pouco? Isso é levar o jogo a sério, porque ele foi feito justamente para rirmos uma vez que estivéssemos nele.

Uma paisagem de El Hazard. Não só um mundo em que podemos entrar, como também um em que alguns personagens principais (como Makoto) entram.

E, se entramos em um mundo em que cada “pessoa” é na verdade um programa criado por diferentes pessoas do “mundo exterior” e temos que lutar e combater como gladiadores para garantir nossa sobrevivência, é assim que será. Se o protagonista de Tron, após ter entrado em seu próprio mundo de jogo não tivesse se deixado ser envolvido por ele e agisse nele com seriedade, jamais teria conseguido fazer tudo que fez. Provavelmente teria morrido no primeiro desafio com as motos, ou mesmo com os discos.

O que isso quer dizer? Não basta querer jogar. É preciso se jogar ao jogo. É preciso realizar esse salto no abismo que é cada game e, envolvido pelas suas nuvens, trevas, escarpas ferozes e trilhas sinuosas. É preciso, sempre, que nos lancemos à aventura.

Kierkegaard, ao falar da questão da angústia, explora justamente esta questão importantíssima que é o salto que instaura um novo modo de ser. Se em um momento não éramos jogadores, em um instante (pelo salto), nos tornamos em jogadores. A angústia que experimentamos nada mais é do que vislumbrar a nós mesmos em nossas diversas possibilidades. Nós nos angustiamos diante de nossa própria liberdade, de podermos definir uma de várias de nossas possibilidades. Ao escolhermos, diz Sartre, matamos todas as outras possibilidades e só deixamos que uma única viva. Confuso? Bem, vamos usar um exemplo tosco. Suponhamos que você seja um ás na programação; suas melhores notas sempre foram na área de extras como matemática e física. Você tem certeza absoluta de que é bom naquilo. Chega então a hora de escolher qual curso vai prestar na universidade. Mas você tem uma queda pela música, que estuda há mais ou menos oito anos. Angustia-se então diante de duas possibilidades próprias: o ser-programador e o ser-músico. Escolher qualquer uma delas é matar a outra. Claro que este exemplo é ruim (pode-se mudar de ideia depois, por exemplo), mas serve para ilustrar o que quero dizer. Até porque, suponhamos que escolha ser programador; se mudar de ideia e passar a ser músico, vai ser um músico que outrora foi programador, o que não deixa de ser diferente. Todavia, deixemos para fritar nossos cérebros em outra oportunidade. 😀

Excelente mapa da Terra Média desenhado por Pauline Baynes, famosa ilustradora.

Ao nos lançarmos verdadeiramente a um game qualquer, é exatamente isso que acontece. Nos angustiamos e, em angústia e em um instante, nos tornamos em jogadores. Entramos em um outro mundo também permeado de riscos, aventura e conflitos. Assim como os protagonistas dos dois filmes de Tron.

É isso que queria que pensassem nesse começo de ano. Espero que tenham um excelente 2011, cheios de novas aventuras e mundos a explorar. Não se esqueçam que dentro de nosso mundo existem diversos mundos; e todos eles podem ser aventurosos. Depende de como os levamos a sério e em que grau eles nos envolvem. Às vezes um pequeno quintal pode ser suficiente e muito mais gratificante que um mundo complexo como o de Ivalice. Ou a Terra Média, ou ainda Nárnia para sairmos dos games e considerarmos também a literatura.

Na realidade, Ivalice e Nárnia servem perfeitamente como exemplos disso que quero dizer, pelo menos no que tange ao “estar em outro mundo” que é característico de todo jogo. Em Nárnia, quatro crianças (ou menos, dependendo de qual livro estamos falando – no meu predileto, somente duas vão) vão parar neste outro mundo fantástico, criado pela música. Em Final Fantasy Tactics Advance, um grupo de crianças (quatro também, vejam só) vão parar nas terras de Ivalice, que só existia em seus videogames. Agora, têm que se virar com personagens e raças que outrora só conheciam de Vagrant Story e alguns jogos da série Final Fantasy.

Imagem de Vagrant Story que se passa em algum lugar do vasto mundo de Ivalice.

É até melhor eu parar por aqui, senão até da Trilogia Espacial do C. S. Lewis eu vou falar! 😛 Contudo, o que quis dizer aqui é muito simples. Estamos vivendo de verdade em outro mundo quando jogamos um game; não é uma metáfora, não é um jeito mais poético de se dizer a coisa. Quem realmente aprecia música, um bom livro ou ainda segue alguma religião pode entender perfeitamente isto que estou dizendo. Jogo é isso: jogar-se e viver em outro mundo durante algum tempo. Seja dando um novo sentido às coisas que estão ao nosso redor (como a “mágica” que torna almofadas em castelos e cobertas em naves espaciais), como dando sentido de jogo a coisas novas que se apresentam a nós. E seria um game diferente disso?

Até o próximo post!

PS: Como prometido no último post, o meu presente (bem atrasado como podem perceber) já está “no jeito”. Para a semana que vem farei um post específico sobre ele.

Academia Gamer: O salto rumo a Tron
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12 ideias sobre “Academia Gamer: O salto rumo a Tron

  • 11/01/2011 em 7:08 am
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    Cara, achei o post fenomenal. Adoraria ver o tema aprofundado aqui no gagá!
    alias, já passando do blog e indo pra parte pessoal: A sua tese trata sobre o que exatamente? os estágios narrativos de uma historia? o envolvimento que se tem com ela?

    Se vc pudesse me enviar uma copia, eu gostaria de lê-la!
    abraço

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  • 11/01/2011 em 7:46 am
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    Sob esse ponto de vista, ver um filme não poderia ser considerado “entrar em um outro mundo”, como espectador? Afinal, torcemos pelos personagens, nos apaixonamos, odiamos, enfim, nos envolvemos com a história.

    Ouvir uma música relaxante não poderia ser considerado “entrar em um mundo musical”?

    Creio qeu todas as atividades podem ser vislumbradas assim, tudo depende do nível de imersão do sujeito.

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  • 11/01/2011 em 9:04 am
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    Algo em específico só terá o valor que a ele atribuirmos, ou desejarmos.

    Pra não soar redundante, já que seu texto está bem completo, só gostaria de fazer uma comparação (e puxar uma sardinha pra minha área, claro) com a palavra. É dela a responsabilidade de concretizar as realidades que desejamos perceber, portanto a nave de corbertor, os Moogles Black Mages ou as aventuras por uma maçã só assim são concebidos porque o que brinca, programa ou escreve atribui a eles este valor. Então os que desejam fazer parte deste mundo, passa a conceber este mundo tal como foi proposto – ou palavreado – do modo que mais lhe apetecer.

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  • 11/01/2011 em 12:53 pm
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    Infelizmente alguns só vão aceitar o termo “imersão” no dia em que a tecnologia (3D, digamos) for perfeita ou quase perfeita. Para certas mentes, o simples estímulo visual ou sonoro pode não ser suficiente para se sentir parte de alguma realidade que não a nossa.
    Mas como disse o Hideto aí em cima, são muitos caminhos para imergir. Basta ter disposição suficiente.

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  • 11/01/2011 em 7:19 pm
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    Parabéns pelo texto! Essa mensagem sobre a dedicação a algo veio bem a calhar. Gostei muito das referências também. Mais um que “me manda” assistir ao primeiro Tron, e fala de Lain (que é tão profundo quanto se queira, à vontade do freguês). Faltou falar só de Rez (jogão de dc e ps2!).
    Mas, além de tudo, realmente gosto desta vertente que alguns textos estão tomando, sobre a dedicação, a imersão, o quanto o mundo de nossos filmes, músicas, livros e jogos, são reais. É como a matrix, é real o que chega ao cérebro. Quando lemos/assistimos/jogamos com seriedade, deixamos intencionalmente que algo se torne, por algum tempo, nossa realidade.
    Isso acaba por explicar porque alguns jogadores se tornam viciados. É a diferença entre experimentar algo como um bom vinho ou (suponho que seja) uma pedra de crack. A fuga da realidade. Penso que esse seja um bom tema para algum texto seu no futuro, creio que poderia levantar uma boa discussão.
    De resto, feliz ano novo!

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  • 11/01/2011 em 11:30 pm
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    @Tiago Lopes
    Esse é basicamente o meu problema de reflexão de modo geral. hehehe Eu penso nessa questão de “entrar em jogo” (que chamei de in-ludere) com bastante freqüência. É algo que me toca profundamente por descrever muitas coisas que faço em meu dia a dia.

    Então, minha dissertação é sobre o sentido de jogar videogame (como é a experiência de jogar um game). Tive que escolher um jogo e fazer o que chamamos (na metodologia de pesquisa que adoto) de “descrição fenomenológica” na qual relato como foi jogar esse game: o que vi, senti, pensei, lembrei etc. E faço uma análise a partir disso, tendo sempre em mente a pergunta principal e norteadora: o que é (ou, como é) jogar um game? Ou, mais especificamente, como jogar Phantasy Star.

    Fique ligado no post da semana que vem que vou falar mais a respeito disso. hehehe

    @Hideto
    Sim! Sem sombra de dúvida. Por isso que usei aqueles exemplos perto do final do post. Tron e Nárnia, por exemplo, servem como exemplos por experimentarmos algo como um “meta-jogo”: não só entramos naquele mundo como também, neste mundo que entramos, outras pessoas (ou personagens) entram nele também.

    Por isso que autores como Gadamer, Buytendijk, Huizinga e, um tanto sem querer, C. S. Lewis afirmam que a música, a literatura, a pintura e a religião são tão próximas. Gadamer mesmo usa o conceito de jogo para repensar a questão da arte e acabar com a noção de gênio e com a primazia da subjetividade no fazer artístico.

    Merleau-Ponty diz que “olhar uma coisa é habitá-la”. então, em certo sentido, perceber algo é estar-naquele-algo. Não sei se chamaria de jogo (é algo em que estive pensando ultimamente, mas sem chegar a conclusões ainda), mas é algo semelhante, sem dúvida.

    @Aglio
    Sem dúvida. A palavra é algo muito pensado dentro da minha área de estudos (a fenomenologia) e também a linguagem de modo geral. Acho até que depende muito mais de quem “usa” estas coisas do que quem as “fabrica” na verdade. Por exemplo, o escritor escreve para o leitor; não importa o que o escritor queria passar, somente o mundo que ele criou que receberá os sentidos atribuídos pelo leitor. É como costumam dizer: depois que se publica um texto, ele deixa de ser seu e passa a ser dos leitores.

    @Iceman
    Com certeza.

    Eu só não gosto muito do termo “imersão” justamente pela carga de sentidos que ele tem hoje que me desagrada um pouco… Assim como a da interatividade. É como se somente alguma coisas fossem interativas (ou “mais inetrativas” como gostam de falar – qual escala será que usam para medir isso? hehehe) ou com possibilidades imersivas. É inegável que ler um livro e assistir um filme é diferente que jogar determinado game, mas os três permitem “imersão”, permitem que estejamos envolvidos (este termo eu acho melhor hehe) por todo o jogo que cada um deles nos oferece.

    E é certo que falta disposição das pessoas que se julgam “superiores” a muitas coisas para que se joguem em mundos desconhecidos e se aventurem nele. Por isso acho emblemático o nome da terra de El Hazard; e porque acho que todo jogo (seja game ou não) poderia ser classificado como “aventura”.

    @strider16
    Valeu pelo elogio!

    Cara, que bom que acabei ajudando você a pensar de novo em aproveitar Lain e Tron. hehehe E você me ajudou também. Quero muito experimentar Rez; só ouço falar bem dele. O que mata é a falta de tempo. Eu tenho quase certeza que vou adorar o jogo.

    Mas são reais mesmo. hehehe Não vou entrar aqui na discussão de real e outros termos relacionados porque levaria uma centena de linhas só para esboçar a discussão. Mas entendo bem o que quer dizer.

    Quanto a comparação que fez, é bem pertinente. É algo a que também tenho me dedicado a pensar a respeito. Se conseguir produzir algo sobre isso, com certeza vou criar um post aqui sobre este assunto

    Feliz ano novo também! (mesmo muito atrasado hehe).

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  • 14/01/2011 em 11:31 am
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    @sonic_tales
    hehehe Que barato! Não sei porque raios eles resolvem redublar às vezes. Quem quer assistir dublado não vai ligar se o som está em 2.0 ou 5.1. hehehe Pelo menos eu não ligo.

    @Rafael Coelho
    Opa! Quer saber qual curso ou qual faculdade? hehehe Bom, eu fiz graduação em Psicologia na UMESP e terminei o mestrado, também em Psicologia, na USP. Segundo o livro do Schuytema sobre design de games, estou no caminho certo para ser um designer ou um escritor de jogos. Será mesmo? hehehehe

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  • 15/01/2011 em 8:41 am
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    O Senil :
    @sonic_tales
    hehehe Que barato! Não sei porque raios eles resolvem redublar às vezes. Quem quer assistir dublado não vai ligar se o som está em 2.0 ou 5.1. hehehe Pelo menos eu não ligo.
    @Rafael Coelho
    Opa! Quer saber qual curso ou qual faculdade? hehehe Bom, eu fiz graduação em Psicologia na UMESP e terminei o mestrado, também em Psicologia, na USP. Segundo o livro do Schuytema sobre design de games, estou no caminho certo para ser um designer ou um escritor de jogos. Será mesmo? hehehehe

    Certo. Eu queria saber o curso, mas ja que vc respondeu os dois, tb

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