“Para quem quer fazer exercícios de reflexão”

Olá crianças!

Hoje eu gostaria de falar um pouco mais sobre a questão da identificação com personagens de games que acabei arranhando no post anterior. Devo alertar que isso, muito provavelmente, só se aplique a jogos com enredos e personagens; aqueles que não tem uma coisa ou outra podem requerer outro tipo de reflexão.

Se tiveram a oportunidade de ler a minha dissertação de mestrado (seja a versão integral, ou ao menos o relato das minhas sessões de jogo com Phantasy Star) poderão ter percebido um aspecto interessante em todo este fenômeno.

Em nenhum momento, em todo o meu relato eu me referi a mim mesmo como a Alis. Não por algum tipo de preconceito de gênero. De modo algum! Tanto é que o mesmo não aconteceu com Odin e Noah e também com Myau. Se desde o começo do relato eu utilizei sempre a primeira pessoa do singular, isto se manteve durante todo o jogo. Mesmo depois de “eu” não ser mais somente uma irmã mais nova vingativa que fica matando moscas e escorpiões superdesenvolvidos para conseguir algumas moedas para visitar outro planeta.

mesmo quando Myau entra no grupo, continuei falando “eu” durante todo o relato. Número plural de personagens controlados não aumenta o número de jogadores.

Inclusive, isto entrou na minha parte de análise da dissertação. Ficou muito claro que, mesmo controlando um grupo de quatro pessoas, era eu que morria, eu que temia um game over, eu que ficava subindo de nível, eu que enfrentava Lassic e qualquer outra coisa que fiz durante o jogo. É como em um jogo de xadrez; talvez fosse mais “correto” dizer que é o Rei que leva um xeque-mate, mas sabemos que, na verdade, somos nós os derrotados e não as peças que estávamos movimentando pelo mapa quadriculado. Não há uma “confusão identitária” entre mim e determinados personagens: lendo Senhor dos Anéis, eu pude compreender Boromir, mas não me confundi com ele.

Eu tinha plena consciência da diferença entre eu (enquanto jogador que é envolvido pelo jogo) e as “peças” que controlava (Alis, Myau, Odin e Noah) com seus respectivos movimentos individuais (magias, ataques com armas de fogo etc.). Embora fale de minha experiência de jogo na primeira pessoa, sempre que faço referência a estes personagens durante o relato, é sempre na terceira pessoa. Será que isso significa que teria estado “menos envolvido” no jogo? Deixemos essa pergunta para pensarmos mais adiante.

Boromir é meu personagem predileto em Senhor dos Anéis (no livro e no filme) por uma série de razões que talvez não valha a pena discutir aqui.

Lembram-se de que falei por alto sobre o que Lewis chamou de construção mórbida de castelos de areia? Tais empreiteiros são aqueles que sabem aquilo ser uma ilusão (no sentido de ser um jogo) e buscam se manter nele o maior tempo possível, esquecendo-se de quem são e desejando intimamente serem uma pessoa ou coisa que não são. Kierkegaard chama isto de desespero e ele se mostra evidente em fenômenos como a inveja: não invejamos um rei por ele ser poderoso, não queremos simplesmente o seu poder e autoridade: queremos ser aquele rei. Isto é inveja, isto é desespero e, infelizmente, isto é o que muitos gamers fazem quando jogam os seus jogos prediletos horas e horas a fio esforçando-se a cada instante para que nada o distraia deste mundo temporário.

Não pensem que o problema de jogar videogame, ouvir (ou tocar) música, ler livros de ficção ou qualquer outra coisa seja o “sair do mundo”. Diversão significa justamente isto: “mudar de rota”, “fazer um desvio”. mas é um desvio que se pretende temporário. Quando há a intenção de se manter dentro deste caminho alternativo para sempre, há a morbidez de Lewis e o desespero kierkegaardiano. Todos nós atendemos aos apelos e às urgências das nossas finalidades mundanas (como um emprego, um cônjuge ou qualquer outra coisa) porque elas nos distraem e nos fazem lembrar de onde viemos e qual é o nosso verdadeiro mundo, aquele em que estamos lançados desde o nosso nascimento (cujo momento de game over desconhecemos) e com o qual temos um compromisso. Uma pessoa que constrói morbidamente um castelo de areia tenta ignorar estes apelos e esquecer de sua própria vida: prefere a vida de um outro; de um herói de videogame às vezes.

Da mesma forma com que a Princesa Esmeralda invoca as Guerreiras Mágicas, nós somos convocados às vezes para entrar em um mundo alternativo e lá conquistar armas, armaduras e vencer o mal. Mas, da mesma forma que as meninas, também temos que voltar para casa, para nosso lar e afazeres cotidianos.

Gadamer e Buytendijk falam da imensa importância dada ao lançar-se ao jogo para ser jogado por ele. Uma pessoa que constrói morbidamente castelos de areia não habita neles: fica do lado de fora juntando e recolocando os grãos de caem de tempos em tempos. É importante deixarmos que o castelo de areia faça de nós aquilo que desejar, pelo tempo que durar. Isso sim é respeitar um jogo; seja ele na forma de um videogame, na forma de um livro ou de uma ópera. Claro que há liberdade de movimento dentro de todo tipo jogo para todo tipo jogador; mas isso não quer dizer que temos tudo sob controle, porque não temos. Isso não quer dizer, evidentemente, que só “acompanhamos” e “observamos” os protagonistas, pois somos responsáveis por eles.

E então, quando nos deixamos envolver mais pelo jogo? Quando nos identificamos (no sentido que falei de se confundir) com certos personagens e tentamos manter o jogo sobre controle, ou quando permitimos que ele nos leve para onde quiser?

Controlamos o leme do barco quando jogamos, mas nunca as ondas e os ventos que nos levam a mares nunca dantes navegados às vezes (desde que nos deixemos levar por eles e façamos a nossa parte).

É isso que queria trazer hoje para vocês. Até o próximo post!

Academia Gamer: Singular ou plural?
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14 ideias sobre “Academia Gamer: Singular ou plural?

  • 29/03/2011 em 6:20 pm
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    Interessante esta questão de assumir ou não um papel num RPG.

    Eu por exemplo não gosto muito de encarnar apenas um personagem nos RPGs. Ao invés de eu enxergar um protagonista como eu mesmo, eu enxergo ele como um “amigo”. Por causa disso, sempre prefiro RPGs onde posso controlar mais de um personagem ao mesmo tempo, porque assim me sinto mais no papel de um mestre de RPG do que de um personagem em específico.

    Só me senti satisfeito jogando Fallout New Vegas depois de usar mods que liberam mais companions simultâneos, que apesar de não poder controlá-los livremente, pelo menos quebra a sensação de solidão do protagonista.

    Por gostar de controlar party, gosto bastante de games de RPG tático como Tactics Ogre e Super Robot Wars. MMOs por sua vez eu não gosto porque eles “forçam” o jogador a encarnar um personagem.

    E por sentir que estou controlando/manipulando os personagens, e não encarnando-os, eu não me incomodo de jogar com personagens femininas.

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  • 29/03/2011 em 9:11 pm
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    Cara, você tá me deixando viciado nessa coluna…

    Todo dia eu abro o site pra ver se tem alguma coisa legal vinda de você. Seus posts estão sensacionais. Continua nesse ritmo e sua carreira vai ser muito promissora…

    Mas então… Eu acho que eu pelo menos, me envolvo muito mais em um jogo quando ele me conduz pra onde ele quer que eu vá. É como aquele caso do post anterior que falei da minha experiência com Oblivion. Eu fico tão preso ao mundo do game que me vejo diante de questionamentos que me fazem mudar os rumos da partida. Mesmo eu não querendo à vezes, eu sou obrigado à desistir de algum item fodástico por exemplo, que por causa desse envolvimento, eu não faço algo grave num game como matar inocentes…

    No Oblivion, dá pra se ganhar umas paradas bem legais, mas tem-se um preço. E isso envolve fazer coisas que ninguém faria nem em pensamento, mas num jogo tudo é permitido, sem remorsos, já eu não consigo ser assim quando me envolvo à esse ponto. E consigo me divertir assim, porque aí você tem um desafio à mais para superar que são os desvios de caráter, dogmas, valores humanos… É uma forma bem interessante de jogar. E a imersão é incrível.

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  • 30/03/2011 em 12:26 am
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    @Fernando Lorenzon
    Entendo perfeitamente isto que diz. Quando fala dos personagens como “amigos” é uma excelente descrição daquilo que quis trazer. afinal, todos eles estão no jogo junto conosco.

    Também gosto de RPGs táticos, com vários personagens (em especial Shining Force e Langrisser). E essa “obrigação” de você ser aquele personagem me incomoda um pouco nos MMOGs da vida também; principalmente porque nem é bem uma exigência. Você até pode tentar interpretar alguém, mas no final das contas, a maioria do pessoal não dá a mínima para isso mesmo.

    Sobre personagens femininas, também não me importo. Mesmo em RPGs de mesa acho que não teria problema (só teria a dificuldade maior da interpretação – isto é, se o sistema e o mestre derem importância a isso durante as sessões de jogo hehehe E eu, quando mestro, dou).

    @Flávio de Oliveira
    Espero que isso não seja ruim! huahuahuahuahauha

    Fico muito lisonjeado! Espero que continue visitando sempre. Tem muita coisa interessante a semana toda aqui; a Academia Gamer sai às terças-feiras somente (exceto se algo muito fora do comum acontecer). Como estou meio corrido, não tenho conseguido postar muita coisa além disso, mas vamos ver como as coisas se dão mais para frente. Obrigado pela força também! Espero realmente ter uma carreira promissora como falou.

    Sem dúvida que o jogo “joga com você”! Isso, aliás, é indispensável em um jogo genuíno. O fato de você se colocar como alguém fora dos personagens de um jogo não retira isso; talvez até o incentive. Você ainda é responsável por eles. No caso de Oblivion, você pode compreender seu personagem como alguém que seria mais misericordioso do que alguém que faria qualquer coisa para obter poder; o personagem segue certa coerência que parte de você, mas isso não significa que você se vê como ele. É mais você vendo o personagem como você (usei muitas vezes a mesma palavra de propósito, para que a reflexão sobre isso demande certo tempo e releitura). Percebe a diferença?

    Jogos assim que mostram a importância de se escolher uma coisa e desistir de outra é sensacional. Eu até prefiro quando dão ênfase nisso em aspectos mais de enredo e história do que aquilo que geralmente acontece: se você pegar a espada, não pode obter o escudo; se pegar o personagem X, não pode conseguir recrutar o personagem Y. Isso acaba sendo uma decisão muito “fora do jogo” na maioria das vezes; quando a alteração é mais radical e em outro sentido, é mais interessante. Como na mudança de gerações em Phantasy Star III: você não escolhe entre um item ou um personagem; você escolhe que rumo sua família inteira vai levar (e isso é algo bem drástico – mudam vilões, itens, familiares, aliados e uma porrada de coisa).

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  • 30/03/2011 em 3:16 pm
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    “inveja: não invejamos um rei por ele ser poderoso, não queremos simplesmente o seu poder e autoridade: queremos ser aquele rei.” Isso me lembra bem aquele pensamento de que a grama do vizinho sempre é mais verde!

    Não me identifico tanto com personagens de rpg, porque os rpgs normalmente têm toda uma história detalhada sobre os personagens e suas personalidades, bem mais do que outros gêneros. Por isso é mais fácil de perceber que “não sou eu”, então eu fico mais como expectadora nesses casos. A única exceção é a Rinoa, já que eu usei isso por vários anos e até fiz cosplay dela. =P

    Mas é interessante notar o que você comentou sobre a derrota: tanto nos rpgs como em outros gêneros, quando perco, minha reação é falar “Droga, morri!” e não “Droga, Fulano morreu!”.

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  • 30/03/2011 em 3:45 pm
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    @helinux
    Tem sempre aqueles que ficam na memória mesmo. hehe

    @Patty K
    hehehe Relaxa. Eu mesmo faço trocentos erros enquanto escrevo e fico bravo quando isso acontece; mas mesmo sem sua auto-correção, já tinha ficado claro o que queria dizer.

    Sim, lembra mesmo esta noção da grama do vizinho ser mais verde. É interessante pensar que, na verdad, não queremos a grama do vizinho, mas ser aquele vizinho que tem a grama verde.

    Achar alguém em uma história e/ou game parecido com você é sempre um barato. No seu caso, foi a Rinoa. E onde estão as fotos deste cosplay? hehehe Eu não me pareço com absolutamente nenhum personagem que acho legal, então nunca nem considerei essa possibilidade.

    Interessante, não é, essa coisa de manter o singular mesmo quando controlamos um grupo de personagens? Eu mesmo achei um barato quando fui reler meu relato pela primeira vez. É o tipo de coisa que passa despercebido.

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  • 31/03/2011 em 11:12 am
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    @Flávio de Oliveira
    Sim! Atores quando interpretam um personagem no teatro e “caem de cabeça” no papel não se confundem com ele. Em RPG é a mesma coisa.

    O divertido em um RPG é que cada um interpreta de um jeito diferente. Tem aqueles que realmente “dão voz” ao personagem (só falam o que ele falaria, fazem gestos e não falam absolutamente nada em off); aqueles que gostam de descrever como ele fala, mas acabam descrevendo tudo em terceira pessoa… Quando eu mestro, ssio não faz diferença para mim, desde que seja o meio que é mais familiar ao jogador.

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  • 31/03/2011 em 9:01 pm
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    Não sei se você já jogou, mas fica aqui a recomendação: Fire Emblem para Game Boy Advance. Este jogo em particular engloba inteiramente a idéia que debateu neste post.

    O jogador possui um avatar próprio nesta edição da série: você é um estrategista e comanda as ações de cada um dos personagens – além deles conversarem diretamente com você. Você não participa da batalha, está além dela, possui visão e conhecimento privilegiados – tudo que um espectador detém em relação às personagens de uma história.

    Entretanto, não conseguia me enxergar como um mero jogador ou espectador, nem enxergar os personagens como meras peças. Eu batalhava junto deles, eu me envolvia em suas histórias, eu torcia por eles e fazia de tudo para sobreviverem e vencerem – sendo que em Fire Emblem a morte de um personagem é permanente!

    Outro exemplo que posso lhe dar é Zelda. Nada contra personagens silenciosos – particularmente os adoro, pois crio em minha cabeça a personalidade deles com o progredir do jogo -, mas eu simplesmente não consigo me identificar com o personagem, me ver como ele – simplesmente porque não o sou. Entretanto, diante de um mundo tão mágico eu consigo me projetar, como se fosse uma segunda fada – uma fada invisível que suspirar aos personagens os segredos da vitória!

    Os jogos em que não tenho este tipo (ênfase em “este tipo”) de imersão são aqueles sem história ou com um enredo que existe apenas para servir de plano de fundo para o jogo – como Mario Bros.. Não que eu goste menos destes jogos, mas eles apenas apresentam desafios a serem vencidos e recompensas a serem conquistadas.

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  • 01/04/2011 em 3:32 pm
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    @Versiani
    Ah sem sombra de dúvida que nos envolvemos com a história, que sofremos e que nos emocionamos. Isso pode ser chamado de “empatia” (como o Lewis chama) ou, o que prefiro, de compreensão. suponha que você está realmente andando com um amigo seu numa floresta povoada de criaturas selvagens perigosas. Agora, imagine que seu amigo é mordido por uma cobra venenosa e em instantes começa a convlusionar. Você o entende, o compreende e sofre junto com ele; mas não se identifica com ele. O mesmo acontece com um ator numa peça de teatro: ele tem que passar à platéia que é outra pessoa que não ele mesmo; mas se ele se confundir com o personagem, acontece o que acontece com a personagem principal do filme Cisne Negro.

    Geralmente jogos com história favorecem esse tipo de relação com personagens porque eles se tornam altamente significativos. No jogo Donkey Kong (em que o mario aparece pela primeira vez), não faria diferença se o nome do game fosse diferente e o vilão fosse um réptil.

    E valeu pelas sugestões! Nunca joguei nada de Fire Emblem, mas sempre ouço falar bem da série. E como gosto de RPGs de estratégia, vou tentar dar uma olhadinha.

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  • 15/01/2012 em 11:49 am
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    Esse negócio de dizer “morri” quando perde no jogo, vem da época dos jogos mais arcaicos como os do atari, onde tudo o que você fazia era disputar uma jogatina contra um outro cara(99,9% dos jogos eram baseados em pontuação e competição!), onde malemá tinha um personagem na tela pra se “identificar”, como no caso do jogo “pong” onde você só via dois riscos e uma bola na tela, então você poderia falar com muito mais propriedade que aquele que perdia era você mesmo.
    Eu comungo da opinião do Versiani, não consigo me ver na pele de um personagem pré-criado ou silencioso; eu sei que esse tipo de personagem foi criado para ser você, mas simplesmente não rola, não desce, e eu vou mais longe… detesto e sempre vou detestar isso, tira muito da magia de um “outro mundo” do jogo. Eu, quando jogo um RPG, quero fugir desse nosso mundo real e embarcar em outro, de verdade, quero cair de cabeça nele e conviver com aqueles personagens. Não tem preço conviver com personagens de uma trama e não se envolver com eles, alguém que jogou Tales of Destiny conseguiu esquecer dos momentos cômicos de Stahn e Rutee ou momentos tristes de infindáveis outros RPGs??? O que eu quero dizer é que esse costume do “morri” é mania mesmo, você sabe que aquele não é você, pois no final das contas você só faz o papel de espectador ou Deus mesmo, guiando os personagens.

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  • 24/01/2012 em 10:06 am
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    @Kaji-san
    Personagens silenciosos não me incomodam tanto porque eu não tento encará-los como alguém que devo encarnar para participar do jogo. Mas compreendo que isso tira toda a fascinação de um jogo deve ser algo a ser desconsiderado já que o principal é o que falou mesmo: embarcar em um outro mundo durante certo tempo.

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